Desconhecia a vertente literária de Lara Croft até me deparar na livraria com Tomb Raider: Os Dez Mil Imortais. Lógico, foi compra certa. Coescrito por Dan Abnett e Nik Vincent, Os Dez Mil Imortais tem como protagonista a nova Lara Croft. Esta nova iteração da personagem foi apresentada nos recentes jogos da série, lançados após o reinício trazido pelo jogo de 2013. A história do livro se passa depois dos acontecimentos desse reinício da franquia. Ele conta com personagens do jogo e uma trama que se relaciona com esta aventura de Lara Croft.
Então, mesmo desconhecendo as tramas dos novos jogos, encarei a leitura. Posso deixar de antemão, entretanto, que não gostei do que li.
Tomb Raider: Os Dez Mil Imortais
Os Dez Mil Imortais narra fatos do início da carreira de Lara Croft. Dessa forma, não veremos a heroína que surge na mente quando falamos no nome de Lara. Sobretudo para os que tiveram a oportunidade de jogar os primeiros jogos da personagem na década de 90. Ou aqueles que ainda associam a personagem à interpretação de Angelina Jolie nos cinemas. Então, fica o alerta de que minha relação com o livro é diferente daqueles que conheceram a personagem nos novos jogos ou simplesmente preferem a nova Lara.
Como dito, baseada no reinício da série, a Lara que acompanhamos no livro é mais humana e realista. E este é um ponto que acredito ser divisivo, pois enquanto alguns rejeitam mudanças em seus personagens queridos, outra parcela deseja que esses mesmos personagens reflitam as mudanças do meio a sua volta. Aqui, me coloco no meio da caminho, reconhecendo que características possam ser alteradas e/ou atualizadas, desde que o resultado final não seja irreconhecível. Todo esse preâmbulo serve para dizer que Abnett e Vincent erraram a mão ao tornar Lara Croft frágil demais no enfrentamento dos desafios ao longo da história. E não me refiro aos vilões que Lara enfrenta, mas a questões psicológicas e relacionadas ao seu transtorno de ansiedade.
Essa tentativa de acrescentar uma camada de fragilidade humana em Lara Croft acabou a tornando levemente caricata, com ares involuntários de comédia. Por exemplo, em certo ponto do livro, Lara está em uma embarcação quando se assusta de forma desproporcional com o alerta sonoro vindo de outro navio. E ainda que eu não seja um especialista em transtorno de ansiedade (ok, sei que agora você pode desconsiderar tudo o que vou falar, e está tudo bem), podendo essa cena ser factível com essa condição, certamente não é uma reação esperada de Lara Croft. Mesmo da Lara Croft mais humana e realista.
“O som soou repentino e ensurdecedor, vindo do nada.
O coração de Lara disparou dentro do peito. Podia sentir o suor escorrendo pela testa e entre suas escápulas. Sua garganta apertou. Não conseguia respirar. Suas mãos começaram a tremer.
Por favor, não!, pensou. Não aqui, não agora.
Kennard se virou na direção do som. O grande europeu com quem Lara havia caminhado pelo cais acenava do iate, junto com todos os seus amigos. Ele havia convencido o capitão a soar a buzina.
‘Seu novo amigo está dando um alô’, falou Kennard, virando-se para Lara. Só então ele notou o quão pálida ela estava e o suor no seu lábio superior.
Ela respirou de maneira irregular enquanto tentava controlar a respiração.
‘Sim’, disse Lara, com um sorriso débil.
‘Qual o problema, Lara? Você está péssima’, disse Kennard. Lara agarrou a lateral do bote. De repente, se deu conta de onde estava e sentiu-se terrivelmente presa. Não podia sair do bote. Não podia caminhar pra lá e pra cá. Não conseguia respirar, droga!
Não aqui, pensou. Não posso lidar com isso aqui. Queria se levantar e andar. Não podia. Tentou engolir, mas sua boca estava seca. Olhou para suas mãos trêmulas. Seu peito parecia se comprimir de um jeito impossível.
‘Droga, Lara, respire’, falou. ‘Não se deixe…’ Tarde demais.
Kennard esticou a mão para Lara.
‘Me diga o que está acontecendo, Lara’, ele implorou. ‘Rápido.’
‘Ataque de pânico’, Lara respondeu, cuspindo as palavras de uma vez só.
‘Você já teve isso antes?’, indagou Kennard.
‘Sim’, falou Lara. Abria e fechava as mãos trêmulas, já que não podia andar. Tentava respirar, mas era como se o ar estivesse entalado na garganta. Não parecia ser capaz de inspirar ou expirar. Sua cabeça girava. O suor pingava em suas costas e escorria na testa rente ao cabelo.”
Tudo isso por uma buzina. Comportamentos e reações como essas estão presente em diversos momentos do livro, tornando a leitura maçante.
Motivação fraca
O início da trama se dá quando Lara Croft recebe uma ligação informando que Samantha Nishimura, sua amiga e companheira de aventuras passadas, está internada devido a uma aparente tentativa de suicídio. Após uma visita à Nishimura no hospital, Lara correlaciona o estado de sua amiga com acontecimentos passados na ilha de Yamatai, local em que as duas estiveram pouco antes. Nada mais é dito sobre esses acontecimentos, então, se você não jogou os novos jogos, ficará com lacunas impedindo o completo entendimento da história.
Após este início, Lara parte em busca de um suposto artefato que pode restaurar a saúde de Nishimura. Até aí, parece o enredo de um jogo dos videogames transposto para o formato de livro. Afinal, convenhamos, Tomb Raider nunca foi conhecido por ter uma história extraordinária, mas essa trama em particular se desenrola de forma ainda mais precária.
Entre as muitas idas e vindas na busca do tal artefato, somos apresentados a uma rede de inimigos (muito toscos) que buscam o mesmo que a heroína/arqueóloga/humana. É quando entra em cena os Dez Mil Imortais presentes no título do livro. Eles têm, confesso, uma introdução interessante. Uma pegada mística, pessoas que podem viver muito mais tempo que um humano comum e com habilidades extraordinárias. Cria-se uma grande expectativa para, no fim, serem apenas um grupo que conseguiu rastrear Lara Croft através de um site malicioso na internet.
E se esse grupo frustra a expectativa do leitor, ainda há a chance de desenvolver um inimigo interessante na figura de um peculiar ator de Hollywood. Sim, afinal, por qual motivo um grande e famoso ator também estaria atrás do mesmo artefato procurado por Lara? Não entrando muito nas especificidades da trama, Fife, o ator, está mais para Dr. Evil do que um vilão que se possa levar a sério.
Clichês e falta de consistência
Tudo isso para além dos clichês óbvios: personagens próximos que se revelam inimigos e personagens desconhecidos que conhecem Lara num dia e no outro já são melhores amigos. Temos também velhinhos sábios que entram na trama apenas para ajudar a protagonista e ter uma morte previsível. Além do artefato que, depois de muito vai e vem, revela estar mais próximo do que se imagina. Enfim, uma trama ruim, mal costurada, com pouca ação e personagens que não se destacam. Aliás, no fim, o artefato nem parece ter o poder que se espera dele.
E não se preocupe. Nishimura, com artefato ou não, fica bem. Seria mais fácil Lara ter apenas acompanhado sua amiga nos dias de internamento. Evitaria muita confusão e mortes.
Considerações
Concluindo, parece que miraram em uma aventura urbana ao estilo Código da Vinci e acertaram em uma história digna de Austin Powers. Recomendo a leitura apenas para os fãs muito fervorosos da série, que podem conseguir encontrar alguma diversão com Lara Croft, independente da qualidade da obra.
Tomb Raider: Os Dez Mil Imortais
Autores: Dan Abnett, Nik Vincent
Tradução: Eric Novello
Editora: Nemo
Publicação: 2016